EPÍLOGO Paulo Sano
dos encontros na casa de Dona Miúda, suas falas cheias de vigor, seu sorriso aberto e franco, sua acolhida sincera. Mesmo depois que se foi, é assim que ela vive em minha memória. Depois, conheci Dona Laurentina, sua irmã, que viveu mais de cem anos, e cujas mãos abençoadas trouxe - ram à luz, como parteira, as gerações seguintes do quilom - bo. Se Dona Miúda era força e afeto, Dona Laurentina era afeto e força. Pelas mãos e pelo abrigo de Dona Miúda, Dona Laurentina, e Doutora, fui adentrando a casa, a vida e a his - tória das outras pessoas. E foi assim que fui recebido por Tonha, Santinha, Daudiva, Martina, Nem. Seria preciso um livro inteiro para falar de cada uma delas, suas peculiarida - des, seu carinho, sua sabedoria. Aos poucos, dei-me conta de que tudo que eu sabia, em minha vida de biólogo e de professor, era muito, muito pouco diante da sabedoria dessas pessoas. Elas sabem ler o tempo e a natureza, sabem de onde o vento sopra e quando a chuva chega, sabem o nome das plantas e dos outros seres vivos que habitam o Cerrado. Sabem costurar a vida do mesmo jeito que costuram o capim-dourado: trabalham com o que a natureza dá e o transformam numa obra de arte. Este livro, no entanto, não foi feito para falar sobre as pessoas do quilombo Mumbuca. Ele existe para que as
F oi num mês de agosto. Eu ainda não sabia, mas naque - la tarde quente, no cerrado do Tocantins, no quilombo do Mumbuca, minha vida estava prestes a mudar para sempre... Quando a porta da casa de paredes pintadas de amarelo claro se abriu, quem me recebeu foi uma senhora de cabelos presos num coque, estatura não muito alta e sor - riso generoso. Era Dona Miúda. Junto dela, estava Doutora, sua filha. Ficamos pouco mais de duas horas conversando sentados na sala. O que me chamou a atenção, nesse dia, foi que Dona Miúda transparecia duas qualidades muito in - tensas e aparentemente, só aparentemente, contrastantes: força e afeto. Depois, com o passar do tempo, descobri que todas as pessoas da Mumbuca herdaram essa mesma característica. De uma maneira ou de outra, são todos descendentes de Dona Miúda. Todos carregam dentro de si a mesma força e o mesmo afeto. Assim começou uma história que já leva mais de vinte anos, mas é sempre presente: a lembrança
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