Nº 51 - Revista Economistas - Março

das mulheres e vários outros grupos sociais. Ao destacar a segregação e hierarquização no mercado de trabalho, pode-se entender que não há racionalidade neutra no fazer econômico: as pessoas, os agentes econômicos, estão permeados por seus preconceitos, limitações e crenças que afetam diretamente suas escolhas. A política de cotas permitiu o acesso à universidade a vários grupos sociais que trouxeram consigo o ímpeto de pesquisar suas próprias existências, experiências e lugares. Cada dia mais sabemos o comportamento do mercado em relação às mulheres, às pessoas pretas, pardas, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência, e principalmente, sabemos como essas “condições de existência” na nossa sociedade se interligam para formar opressões ainda mais complexas (uma mulher branca não vivencia a mesma opressão sistêmica de uma mulher preta, por exemplo). Foi nesse sentido que o ensino da economia feminista me levou a questionar a ausência de políticas de cotas para pessoas T (transgênero, transsexuais e travestis). Se hoje nos deparamos com inúmeros trabalhos de conclusão de curso que alertam para o funcionamento do sistema econômico e social em relação à população negra, isso se deve à presença dessas pessoas dentro da academia, fazendo ciência. O mesmo não pode ser dito em relação à população T, que além de sofrer com o preconceito e a discriminação, se vê com reduzidas oportunidades de estudo e emprego. Se lembrarmos que mulheres trans têm expectativa de vida de 35 anos no Brasil,

enquanto para mulheres cisgênero ela é de 80 anos, percebemos que não é só de oportunidade de estudo e trabalho que essa população é privada. Inspirada por Robert Kurz em seu texto “Seres humanos não rentáveis”, aponto que nossa sociedade não “encontra” valor social para as mulheres trans: enquanto mulheres cis são imbuídas das funções de gestar, parir, cuidar, educar, realizar todas as atividades domésticas e pacificar os ímpetos dos homens por meio do “amor” (aqui me inspiro em Rositha Scholz), as mulheres trans não poderiam realizar tais funções. O padrão cisgênero e heteronormativo da nossa sociedade a impede de valorizar as pessoas apenas por serem pessoas, sem funções, sem adendos, sem adjetivos. Portanto, convoco os economistas a olhar a economia com o olhar ampliado, considerando a existência de todos os grupos sociais que tanto são prejudicados por continuarmos a tratar a ciência econômica tradicional como neutra e racional. Só assim podemos parar de acreditar que os salários derivam apenas da produtividade, que mulheres têm preferência pelo trabalho doméstico ao invés do profissional, e principalmente, para compreendermos que as políticas econômicas afetam de maneira diferente os diversos grupos populacionais, principalmente quando são criadas para serem “gênero neutras”, tais como as políticas fiscal, tributária e previdenciária. Urge ensinar a economia com olhar de gênero. Urge fazer a economia com olhar de gênero.

Economista e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Piauí. Pesquisadora e extensionista em Economia Feminista e professora do Departamento de Ciências Econômicas pela mesma instituição. Membro da Rede Brasileira de Economia Feminista. Kellen Brito

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