Nº 51 - Revista Economistas - Março

EXPEDIENTE

Presidente: Paulo Dantas da Costa Vice-presidente: Flávia Vinhaes Santos

Eduardo Rodrigues da Silva Eduardo Reis Araujo Fernando de Aquino Fonseca Neto Gelton Pinto Coelho Filho Gilson de Lima Garófalo Heric Santos Hossoé João Hallak Neto José Luiz Pagnussat Júlio Flávio Gameiro Miragaya Juliane da Costa Furno Lauro Chaves Neto

Conselheiros efetivos: Carlos Alberto Safatle Carlos Roberto de Castro Claudemir Galvani

Clovis Benoni Meurer Flávia Vinhaes Santos Heric Santos Hossoé João Manoel Gonçalves Barbosa Kerssia Preda Kamenach Lauro Chaves Neto Maria de Fátima Miranda Maria do Socorro Erculano de Lima Maurílio Procópio Gomes Mônica Beraldo Fabrício da Silva

Luiz Carlos Delorme Prado Mônica Beraldo Fabrício Maria Cristina de Araújo Paulo Sérgio Fracalanza

Pedro Garrido da Costa Lima Roberto Bocaccio Piscitelli Sidney Pascoutto da Rocha Wellington Leonardo da Silva Comissão de Comunicação: Flávia Vinhaes Santos (Coordenadora) Antonio Corrêa de Lacerda (Vice-Coordenador) Clovis Benoni Meurer Denise Kassama Franco do Amaral Gilson de Lima Garófalo Júlio Flávio Gameiro Miragaya Lauro Chaves Neto Mônica Beraldo Fabrício da Silva Róridan Penido Duarte

Paulo Dantas da Costa Paulo Hermance Paiva Paulo Roberto Polli Lobo Tania Cristina Teixeira Teresinha de Jesus Ferreira da Silva Conselheiros suplentes: Ana Cláudia de Albuquerque Arruda Laprovitera Antonio Corrêa de Lacerda

Antônio de Pádua Ubirajara e Silva Carlos Henrique Tibiriçá Miranda Cid Cordeiro Silva Denise Kassama Franco do Amaral Eduardo Reis Araujo Evaldo da Silva

Coordenação de Comunicação: Renata Reis – Coordenadora Manoel Castanho – Jornalista Raquel Passos – Assessora imprensa@cofecon.org.br Projeto Gráfico e Editoração:

Gilson de Lima Garófalo Gustavo Casseb Pessoti Josélia Souza de Brito Júlio Flávio Gameiro Miragaya Noel Leite da Silva Omar Corrêa Mourão Filho Paulo Roberto de Jesus Rogério Vianna Tolfo Vicente Ferrer Augusto Gonçalves Conselho Editorial: Flávia Vinhaes Santos (Coordenadora) Paulo Dantas da Costa (Vice-coordenador) Ana Cláudia de Albuquerque Arruda Laprovitera Antonio Corrêa de Lacerda Antônio de Pádua Ubirajara e Silva

Raquel Passos ISSN 2446-9297

As ideias e informações contidas nos artigos publicados nesta revista são de responsa- bilidade de cada autor, não devendo ser interpretadas como endossadas ou refletindo o pensamento do Conselho Federal de Economia.

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SUMÁRIO

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EDITORAL

No dia 8 de março comemoramos o Dia Internacional da Mulher e, tradicionalmente, a revista Economistas deste mês é dedicada às mulheres economistas. Elas são fundamentais na luta por uma sociedade mais justa e inclusiva e publicamos, nesta edição, artigos escritos por mulheres economistas, com dois tipos de abordagem: a forma como a economia olha para elas (questões de gênero) e a forma como elas, dentro de suas especialidades, olham para a economia. Entendemos que estas perspectivas enriquecem a análise de diversas questões e tornam a ciência econômica mais plural. Ao longo dos anos, temos testemunhado avanços notáveis nas lutas das mulheres por direitos e oportunidades iguais. A entrega do Prêmio Nobel de Economia de 2023 a Claudia Goldin, por seus estudos sobre as mulheres no mercado de trabalho, apenas reforça a importância deste debate. Uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostrou que nos últimos dez anos a paridade salarial aumentou de 72,0 para 78,7 – quanto mais próximo de 100, maior a equidade. Este indicador mostra que, apesar dos avanços, ainda há muito a ser feito.

Os artigos publicados nesta edição abrangem temas que vão desde investimentos ao financiamento do Sistema Único de Saúde, passando pela economia feminista, economia do cuidado, participação das economistas nos órgãos públicos e outras questões de gênero. Além disso, em entrevista exclusiva, a economista Juliane Furno fala sobre o momento atual da economia brasileira, as travas ao crescimento econômico, a responsabilidade fiscal, o programa Nova Indústria Brasil, o desenvolvimento e políticas para o combate à desigualdade no País. Desde 2023 a Comissão Mulher Econo- mista, coordenada pela conselheira Teresinha de Jesus Ferreira da Silva, inclui também a Diversi- dade em seu escopo. Neste sentido, celebramos o feito do jovem Thiago da Costa, primeiro estu- dante com paralisia cerebral a se formar no curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Juiz de Fora. Ele agora é um economista, com registro no Corecon-MG, e está organizando um projeto de consultoria, treinamentos e cursos na área de planejamento estratégico para promover a inclusão econômica.

Boa leitura

Paulo Dantas da Costa Presidente do Cofecon

Economista. Especialista em Direito Tributário e Administração Financeira Governamental. Trabalhou no Banespa. Foi auditor fiscal da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia, tendo ocupado diversos cargos de direção, inclusive o de coordenador de Programação Financeira. Foi presidente e vice-presidente do Corecon-BA, presidente do Cofecon em 2014, 2015 e 2023 e vice-presidente da autarquia em 2022. Atualmente, é consultor em diversas empresas públicas e privadas.

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ENTREVISTA

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Juliane Furno: “A finalidade da economia é gerar bem-estar” Em entrevista à revista Economistas, assessora do presidente do BNDES fala sobre crescimento econômico, industrialização e combate à desigualdade

POR MANOEL CASTANHO

Juliane Furno é uma economista heterodoxa. Tem mestrado e doutorado em Desenvolvimento Econômico, ambos pela Unicamp. Atuou na prefeitura de São Paulo, onde foi gestora de políticas sociais de trabalho e renda; foi assessora econômica parlamentar na Câmara Federal; economista-chefe do Instituto para a Reforma das Relações Estado e Empresa (IREE); e docente em várias instituições, entre elas a Unicamp e a UERJ. Desde 2023, atua como assessora da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Junto ao professor Pedro Linhares Rossi, é autora do livro “Economia para a Transformação Social: Pequeno Manual para Mudar o Mundo”. Ela defende que o economista deve, em certas circunstâncias, deixar de lado o pragmatismo e o foco nos problemas do presente para que não perca o ideal de sonhar com um futuro diferente. Juliane falou à revista Economistas sobre o momento atual da economia brasileira, as travas ao crescimento econômico, a responsabilidade fiscal, o programa Nova Indústria Brasil, o desenvolvimento e políticas para o combate à desigualdade no País.

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RE: No início de março foi divulgado o PIB brasileiro de 2023, com um crescimento da ordem de 2,9%. Como você vê a importância deste número para a economia brasileira? JF: É um resultado expressivo, bem maior que as primeiras estimativas do mercado e precisa ser comemorado. A economia brasileira cresceu absorvendo mão de obra, reduzindo a taxa de desemprego, aumentando a massa salarial, com redução da inflação e valorização do real, mas ainda apontando os dilemas estruturais da economia brasileira, ou seja, crescendo sem uma mudança produtiva substantiva. É um crescimento, em boa medida, sustentado ainda no setor externo, no agronegócio e no consumo das famílias, o que tem fôlego curto. RE: Nos últimos dois anos o crescimento se acomodou em torno de 3%. Seria este o novo normal? E qual seria o nosso potencial de crescimento, especialmente depois de ter passado por um período de estagnação que vem desde 2014? JF: Não acho que este vá ser o novo normal. Há um conjunto de elementos que não devem se repetir em 2024, inclusive os gastos do governo vão estar mais comprimidos, mas também significa que se superou o pessimismo quanto ao que seria o primeiro ano do terceiro governo Lula. Havia um pessimismo quanto ao aumento dos gastos públicos, que levaria a um aumento da inflação que, para ser corrigido, demandaria um aumento substancial dos juros, comprimindo o investimento. E nada disso aconteceu.

RE: Vários indicadores econômicos têm apresentado resultados expressivos. O desemprego está no nível mais baixo desde 2014 e a balança comercial teve um superavit de quase US$ 100 bilhões em 2023. Na sua avaliação, qual é a maior trava para o crescimento econômico brasileiro? JF: Em primeiro lugar, a trava fiscal. O arcabouço fiscal limita os gastos discricionários do Estado, que não pode mais manejar a política fiscal com objetivos de curto ou longo prazo levando em conta uma análise mais minuciosa do cenário real. Os governos anteriores deixaram heranças, e elas podem ser materiais e objetivas, mas também ideológicas. O teto de gastos não deixou apenas a existência de uma regra que limitou os gastos públicos, mas a herança ideológica de que os gastos públicos precisam ser controlados por lei. Este é um rebaixamento do que era anteriormente a organização da política fiscal do Estado, quando não havia uma lei, mas um conjunto de acordos tácitos entre o Executivo e o Legislativo, e o Executivo mandava uma peça orçamentária com uma meta de resultado primário, levando em conta a estimativa de arrecadação e de despesas. Hoje a meta de resultado primário está numa lei e não permite mais a ação discricionária do Estado. Nós perdemos um instrumento, não por responsabilidade deste ou daquele governo, mas da sociedade – inclusive nossa, como economistas, que não conseguimos travar este debate com qualidade suficiente e massificá-lo de forma consistente para ganhar adesão e mudar a correlação de forças para que fosse possível descartar o teto de gastos e, no seu

O arcabouço fiscal limita os gastos discricionários do Estado, que não pode mais manejar a política fiscal com objetivos de curto ou longo prazo levando em conta uma análise mais minuciosa do cenário real."

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lugar, não colocar nada. O Estado não vai mais ser um indutor tão forte quanto foi em outro período. No melhor dos cenários, os gastos públicos vão crescer 2,5%. No segundo governo Lula, a média de crescimento real das despesas primárias do Estado foi de 9%. Outra trava é a monetária. Não estou entre os que acham que os juros determinam o investimento, mas eles são um componente importante. Não poder manejar esta variável, relegada a um Banco Central autônomo, também é uma trava, porque o governo não terá a complementariedade entre a política fiscal e a monetária. Às vezes o fiscal é mais expansionista e o monetário é mais restritivo, e essa sinergia deve existir para pensar o crescimento e o desenvolvimento de forma integral, que não é só a estabilidade de preços, mas o crescimento e a geração de emprego. Por fim, uma trava estrutural é o desenvolvimento. Uma economia que gera emprego essencialmente no setor de serviços, que é basicamente composto de atividades servis, de baixo valor adicionado, pouco ligadas à estrutura industrial, é uma economia incapaz de internalizar

o progresso técnico e a acumulação de capital. O capital industrial, não a indústria antiga, mas a do futuro, precisa ser hegemônico e coordenar as decisões de investimento, para que não tenhamos crescimento aos solavancos, mas sustentado na indústria, na inovação e na geração de empregos qualificados. RE: Em 2023 o governo apresentou um déficit fiscal da ordem de R$ 230 bilhões. A meta para o indicador em 2024 é zero, mas existe certo ceticismo a respeito. Qual a sua opinião sobre o assunto? É possível ter responsabilidade fiscal aumentando os gastos? JF: Estamos partindo da prioridade errada e dizendo que o déficit vai ser zero, mas já perguntamos quais áreas precisam de recomposição do orçamento? Precisamos encontrar um equilíbrio entre a necessidade de recomposição e as finanças públicas. Os direitos precisam se espremer para caber num orçamento apertado. Seria mais importante ter um bom planejamento, que levasse em consideração vários fatores. Então,

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levando em conta que o Brasil ainda tem problemas da primeira revolução industrial que não combinam com um país desenvolvido, com 100 milhões de pessoas em insegurança alimentar, tantos milhões fora da escola, sem acesso a saneamento, teremos tantos bilhões de déficit alocados neste ou naquele programa. Alguém precisa pensar o ideal para então fazer a mediação entre o ideal e o concreto. Mas a pergunta é provocativa em vários sentidos e a resposta é sim. Há um conjunto de acadêmicos que acreditam que o déficit fiscal resolve todas as coisas e que qualquer proposta que tenha superavit é uma proposta austera. Não necessariamente é assim. É preciso levar em conta o momento da economia, e quanto mais instrumentos tiver à disposição, melhor. Os governos anteriores de Lula mostraram que é possível ter responsabilidade fiscal e apresentar superavit primário sem cortar gastos, ao contrário, elevando gastos. É possível aumentar despesas fazendo superavit, desde que o tipo de despesa mobilize principalmente os que mais consomem – e eles consomem produtos que, infelizmente, são mais tributados, mobilizando o comércio e o mercado interno e gerando maior capacidade de arrecadação. Nem sempre um déficit significa que as despesas cresceram e um superavit significa que estamos cortando despesas. RE: A inflação de fevereiro foi de 0,83% (em linha com o mesmo mês do ano passado, 0,84%), acumulando 4,50% nos últimos 12 meses. Você costuma ser crítica em relação à postura de preocupação excessiva com a inflação. Então, qual a sua análise destes números e quais são as razões desta postura crítica? JF: A teoria monetarista veio ganhando espaço desde a década de 1970, trazendo uma preocupação unicamente com a estabilidade de preços. O tripé macroeconômico pós-plano Real tinha não somente metas de inflação, como metas declinantes, que tinham que estar cada vez mais próximas de zero. O governo Lula flexibilizou esta parte do tripé. A minha crítica é porque a inflação se torna o grande indicador de performance da economia e ela é tratada como se fosse uma coisa só, oriunda

de um único processo e que sempre penaliza os mais pobres. Há vários causadores da inflação. Pode ser uma pressão de demanda, um choque de oferta, mas também há outros elementos, como o poder de monopólio e oligopólio na precificação, elementos inerciais, é algo bastante complexo. Ela é tratada como se sempre fosse oriunda da demanda e corrigida pelo único instrumento que o tripé macroeconômico coroou como instrumento de combate à inflação, que é a taxa de juros. Às vezes uma inflação persistente de alimentos pode ter como meio de resolução um amplo processo de reforma agrária e crédito agrícola, aumentando a produção. Além disso, a inflação nem sempre prejudica os mais pobres. É um mito. Temos um índice de inflação que é composto de uma cesta gigante de bens e serviços. Quando a inflação está localizada em bens, normalmente prejudica os mais pobres,

Às vezes uma inflação persistente de alimentos pode ter como meio de resolução um amplo processo de reforma agrária e crédito agrícola, aumentando a produção."

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mais inteligente, e isso é algo mais complexo do que o sistema brasileiro, que trata tudo como se tivesse a mesma origem e o mesmo instrumento. RE: Segundo dados da FIESP, a produção industrial brasileira teve aumento de 0,2% em 2023, mas ainda está 16,3% abaixo do pico histórico da série, atingido em maio de 2011. Como você vê a importância destes números? JF: A indústria é um elemento extremamente importante para o desenvolvimento de qualquer economia, pelo potencial de encadeamento. Mesmo para transformar máquinas em máquinas, ela vai precisar de energia, minério, matérias primas, fornecendo um produto que será destinado àquela economia, além de demandar serviços acessórios como tecnologia da informação, design, contadores, economistas, entre outros. Um emprego diretamente vinculado ao setor industrial tende a gerar vários empregos indiretos. Além disso, a indústria gera os empregos mais qualificados, internaliza progresso técnico, gera soberania e reduz a vulnerabilidade à dinâmica internacional. A reversão da desindustrialização não é fácil, envolve uma série de instrumentos, mas não está em questionamento a importância de o Brasil se reindustrializar como forma de garantir o crescimento sustentado e gerar empregos de qualidade. Se fôssemos um país pequeno, sem mercado consumidor, sem recursos, poderíamos pensar numa inserção externa exportadora de produtos primários para importar produtos industrializados. Este não é o caso do Brasil, que tem uma vocação para ser um grande país o mais autossuficiente possível. RE: Em janeiro foi lançado o plano Nova Indústria Brasil, com previsão de R$ 300 bilhões em investimentos até 2026. Entre elogios e críticas, alguns afirmam que está alinhado com a política industrial que se pratica em países desenvolvidos, enquanto outros criticam o excessivo peso do Estado. Qual a sua visão sobre o programa? JF: Ele está bastante alinhado com o debate de fronteira sobre política industrial. É o amadurecimento de um debate que vinha

porque boa parte da renda deles é direcionada para bens de primeira necessidade. Os serviços custarem mais caro numa economia como a brasileira significa que os salários estão subindo. Neste caso, ao conter a inflação com juros, você aborta um processo de aumento da renda do trabalho. E há o elemento de curto e longo prazo. Por exemplo, se todos destinarem 100 reais de sua renda para beber cerveja, haverá uma pressão de demanda e um aumento de preços, mas também um estímulo, porque haverá empresários pensando em como lucrar vendendo cerveja. Se houver um aumento da taxa de juros para corrigir a inflação, será interrompido um processo de crescimento econômico que poderia ser mobilizado com o aumento do investimento industrial em fábricas de cerveja. São sinais contraditórios. Uma certa complacência com a meta de inflação pode ser

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acontecendo entre economistas que hoje ocupam espaços importantes no governo, que debatiam se a indústria era um fim ou um meio. A finalidade da economia é gerar bem-estar, garantir a execução dos direitos humanos, buscar uma sociedade com a maior possibilidade de exercício pleno da democracia econômica, com acesso integral e universal aos direitos. Para isso a indústria não é o fim, é o meio. Ela garante que uma economia consiga sustentar estes direitos a partir da geração de renda, oportunidades de trabalho, restrição das vulnerabilidades externas, geração de bens públicos e serviços que sejam capazes de atender a estes direitos. A política industrial é guiada por missões, em que a indústria é o meio, e cada missão tem uma palavra muito importante: "para". A primeira missão se chama “Cadeias alimentares para garantir soberania nacional”. A segunda, “Avançar no complexo econômico industrial da saúde para fortalecer o SUS e o acesso à saúde integral”. A ideia da indústria é melhorar o SUS, o sistema de saneamento, corrigir o desequilíbrio ambiental, construir uma nova matriz energética e uma indústria que seja menos intensiva em recursos naturais, fortalecer as cadeias agroalimentares para garantir a erradicação da fome. Neste sentido, é uma política muito bem desenhada.

RE: Entre os recursos anunciados para o plano, R$ 250 bilhões virão do BNDES. Que impacto eles terão em termos de crescimento e diversificação econômica para o Brasil e qual a importância do Banco para a realização de projetos considerados estratégicos? JF: Quando falamos disso, afirmamos duas coisas: primeiro, que o BNDES é muito importante, e ainda bem que este banco não foi destruído. Segundo, ele passou por um processo de criminalização muito grande, alvejado pela suposta existência de uma caixa preta. O BNDES perdeu a Taxa de Juros de Longo Prazo que utilizava para financiar setores estratégicos ou portadores de futuros. É um banco que financia investimentos com a Taxa de Longo Prazo, que hoje está pari passu com a Selic. Só existe taxa de juros subsidiada para inovação e digitalização, por autorização do Congresso Nacional. E ainda assim, de maneira comprimida: no máximo, 5% do lucro do Banco. Pelo menos 80% destes R$ 250 bilhões serão financiados a taxas de mercado. Além disso, hoje o BNDES não recebe recursos do Tesouro Nacional. Então, é um programa que custará muito pouco. Hoje os Estados Unidos financiam sua política industrial, da ordem de trilhões de dólares, com taxas subsidiadas. Todos os países sabem que, para se posicionar na geopolítica mundial, vão precisar que os Estados subsidiem setores estratégicos que têm capacidade de gerar mais empregos e progresso técnico.

Se fôssemos um país pequeno, sem mercado consumidor, sem recursos, poderíamos pensar numa inserção externa exportadora de produtos primários para importar produtos industrializados. Este não é o caso do Brasil, que tem uma vocação para ser um grande país o mais autossuficiente possível."

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RE: No livro economia para a Transformação Social, você defende, junto ao professor Pedro Linhares Rossi, que o desenvolvimento deve ter um propósito e que seus motores devem ser a distribuição e a infraestrutura social. Quais são as vantagens deste modelo? JF: Sou crítica a uma ideia comum de que não há crescimento sem distribuição de renda. O período militar mostrou o contrário: é possível crescer concentrando renda, dependendo de qual setor vai mobilizar o crescimento. Mas, apesar de não serem necessárias ao crescimento, a distribuição de renda e a infraestrutura social agregam potência ao crescimento econômico. O que determina o investimento é a demanda, e a demanda é uma função da renda. Portanto, se há distribuição de renda, há aumento da demanda e do investimento, que é a principal variável de crescimento sustentável. A infraestrutura social pensa no bem-estar coletivo, que não é um somatório do bem-estar individual, mas um sistema de bem-estar social. Os espaços comunitários, de lazer, as praças, os centros integrados de juventude, as escolas, universidade, lavanderias públicas, creches comunitárias, inclusive a libertação de parte do trabalho de reprodução social que acaba recaindo sobre as mulheres e causando uma série de dificuldades de melhor inserção no mercado de trabalho. Às vezes a renda pode até ser menor, mas

a quantidade de serviços que uma pessoa acessa mais do que compensam. E isso aponta para uma sociedade em que as pessoas convivem mais, socializam mais, interagem mais. A infraestrutura social também é isso. RE: Um dos maiores problemas que a economia brasileira enfrenta são as desigualdades sociais – que envolvem temas como desigualdade de renda, regional, de gênero, racial, entre outras. Que medidas ou que políticas você recomendaria para a redução das desigualdades no Brasil? JF: Dentro do capitalismo sempre vai haver desigualdade, mas penso que é com a combinação de políticas universais com políticas focalizadas, em que o planejamento estatal atua de forma prioritária. Políticas universais são aquelas que melhoram a vida de todos, como é o caso da política de valorização do salário mínimo, da formalização do mercado de trabalho, do aumento de vagas no ensino superior e do fortalecimento da seguridade social. Ao mesmo tempo, tem que ter políticas focalizadas para diminuir a extrema pobreza, como é o caso do Bolsa-Família, ou políticas de ações afirmativas para incorporar mulheres e negros nas universidades e nos concursos públicos. Não se combate a desigualdade só com políticas focalizadas, nem só com políticas universais, mas com um mix destes dois elementos.

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ARTIGO

INFRAESTRUTURA A necessidade de investimentos em no Brasil O Brasil precisa ampliar os investimentos na melhoria e na ampliação da infraestrutura. O governo é protagonista, sendo responsável pelo planejamento estratégico, pela promoção do ambiente de negócios e pela atração do capital privado. Ressalte-se que o Novo PAC, sozinho, não resolverá isso.

POR RENATA MOURA SENA

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De acordo com o estudo da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB) e da Ernst & Young (EY), o investimento em infraestrutura no ano de 2023 cresceu 19% em relação a 2022, alcançando R$ 213,4 bilhões, o maior montante desde 2014. Desse total, 77% foram investimentos privados. Entre 2014 e 2022, os investimentos públicos no setor decresceram, associados à crise de 2015 e às consequências do Teto de Gastos a partir de 2016. Mesmo com os investimentos privados, eles não foram suficientes para suprir as demandas do país. Por isso, é urgente a necessidade de ampliação de recursos em projetos e obras que foquem nos retornos econômicos, para o próprio setor e para toda cadeia impactada direta e indiretamente, e em retornos socioambientais. A infraestrutura abrange quatro grandes setores: Logística e Transportes, Energia, Saneamento e Telecomunicações. Em transportes, os investimentos ocorreram nos acessos e modais

como rodovias, ferrovias, portos e aeroportos. No setor energético, há crescimento das energias renováveis, que têm alterado a matriz energética do país. Em 2010, eólica e solar participavam com 1% da matriz, em 2022 somavam 14%. No setor de Saneamento, a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) alterou as competências da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) e fortaleceu os processos de universalização do acesso à água e esgoto no país. Tem como meta, até 2033, atender 99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos. Para que isso ocorra, um dos pontos do Novo Marco é o incentivo à concessão da prestação de serviços. A Lei aprofunda os processos de regionalização, de forma a haver viabilidade econômico-financeira para atrair o capital privado e ampliar os investimentos no setor, e oferece segurança jurídica aos processos de privatização das empresas do setor.

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Figura 1 Investimentos em Infraestrutura (R$ bilhões, constantes, atualizados pelo IPCA)

*2023 Projeção Fonte: EY Barômetro da Infraestrutura Edição 10. Elaboração: ABDIB

Já em Telecomunicações há o aumento da demanda pelos serviços, tanto pelo crescimento do uso do IoT (internet das coisas) quanto pela conectividade 5G, cujos investimentos têm sido acompanhados de forma tímida pelas empresas. Apesar desses avanços, o país possui significativos desafios a serem enfrentados, tais como aumento dos investimentos e dos financiamentos, garantias, universalização (tanto do acesso quanto da qualidade dos serviços) e impactos ambientais. De acordo com a OCDE, entre 2013 e 2023 os países em desenvolvimento realizaram investimentos públicos em infraestrutura entre 5% e 7% do PIB, em média. Para o mesmo período, o Brasil investiu cerca de 2%. Segundo a CNI, a projeção de investimentos para a manutenção das infraestruturas existentes e redução de gargalos deveria ser de cerca de 4% do PIB pelas próximas duas décadas. No Ranking de Competitividade Mundial de 2023, do IMD (International Institute for Management Development), o Brasil ocupa a 60ª posição geral de um total de 64 países. Em Infraestrutura ocupamos a 55ª posição. Estamos

atrás de Argentina, México, Chile e Uruguai, entre outros países em desenvolvimento. Ao abrir os dados, temos que o nível de eficiência nas infraestruturas e serviços de portos, trens e qualidade nas estradas do país tem oscilado entre a penúltima e última colocação. Além da escassez de recursos, o Brasil conta com problemas relacionados à confecção de bons projetos e na execução das obras. De acordo com o TCU, de um total de 21 mil obras existentes em 2023, 8,6 mil estão paralisadas. O percentual saiu de 29% em 2020 para 41% em 2023. Para um país com investimentos aquém do necessário para manter sua infraestrutura, esse número é inadmissível. Como resultado, temos a redução da eficiência da economia do país e, notadamente, da indústria. Segundo estudo da Fundação Dom Cabral (FDC), em 2022 os custos logísticos do Brasil em relação ao faturamento bruto das empresas chegaram a 12,37%, frente a 8,5% dos EUA. O resultado é o pior na comparação com as 20 maiores economias do mundo e, ainda de acordo com a FDC, corresponde a mais da metade do custo-Brasil.

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Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento alterou as competências da ANA e fortaleceu os processos de universalização do acesso à água e esgoto no país. Tem como meta, até 2033, atender 99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos."

A formação de um banco de projetos bem executados, com prioridades nos impactos e benefícios econômicos e socioambientais, transparente, de forma a direcionar as decisões e escolhas dos policymakers, com foco no aumento da eficiência e na redução de custos, se faz urgente para todas as áreas da infraestrutura. Em 2016 foi criado o PPI (Programa de Parcerias para Investimentos), com objetivo de ampliar e fortalecer a interação entre o Estado e o setor privado. O BNDES é membro do conselho do PPI e atua estruturando, modelando projetos e indicando empreendimentos que sejam qualificáveis para desestatização ou implantação de PPPs (Parcerias Público Privadas). O setor de Energia destaca-se, com a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), que desenvolve estudos e pesquisas voltadas ao planejamento do setor de energia elétrica, petróleo, gás natural e derivados e biocombustíveis. Inspirada na EPE, em 2012 foi criada a EPL (Empresa de Planejamento e Logística), com objetivo de desenvolver projetos, estudos e pesquisas para o planejamento da infraestrutura de logística e transportes. Em

2022, houve sua fusão com a VALEC, criando a INFRA S.A., cuja função é a prestação de serviços de planejamento, estruturação de projetos, engenharia e inovação para o setor de transportes. Apesar desses dois exemplos, o país ainda conta com muitos problemas associados à confecção de projetos. Com intuito de incentivar os investimentos privados, em 2011 foram criadas as “debêntures incentivadas”, voltadas para a captação de recursos para infraestrutura e benefício fiscal aos investidores, por meio da isenção de cobrança de IR e IOF sobre a rentabilidade. Surgiram como alternativa à redução de empréstimos realizados pelo BNDES. Em 2024, houve a aprovação da Lei Nº 14.801, sobre as “novas debêntures de infraestrutura” que complementam a lei de 2011. Os títulos atuais deverão ser emitidos por concessionárias, permissionárias e companhias autorizadas a explorar serviços públicos. Os recur- sos deverão ser aplicados em projetos de inves- timento ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Também beneficiarão as empresas emissoras em relação

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ao recolhimento de IR, por meio da dedução dos juros pagos da apuração do lucro líquido e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Adicionalmente, em agosto de 2023 o Governo Federal lançou o “Novo PAC” (Plano de Aceleração do Crescimento), que contempla R$1,7 bilhão para investimentos em infraestrutura até o ano de 2026, em todos os estados. A previsão é de que parte dos recursos virão dos orçamentos da União, empresas estatais, financiamentos públicos e cerca de 50% dos investimentos virão do setor privado. Estão previstos R$349,1 bilhões para Transportes (transporte eficiente e sustentável), R$ 565,4 bilhões em Energia (transição e segurança energética), R$30,5 bilhões em Saneamento (água para todos), R$27,9 bilhões para Telecomunicações (inclusão e conectividade digital), entre outros investimentos. Além de todos esses desafios, as mudanças climáticas que temos percebido de forma mais efetiva desde 2023 (e potencializadas pelo El Niño) têm trazido intensas ondas de calor, alteração no regime de chuvas, com secas em algumas regiões e tempestades em outras, e fortes ventos, e criam a necessidade de adaptação das cidades e das infraestruturas a essas novas condições meteorológicas. De acordo com estudo do Banco Mundial, os danos à infraestrutura causados pelas mudanças climáticas têm potencial de afetar o PIB negativamente em 1,3%. As infraestruturas resilientes são aquelas capazes de absorver ou se recuperar de impactos naturais de forma rápida e eficiente. O debate tem aumentado, principalmente no setor de

transportes, para rodovias, portos e hidrovias, voltados principalmente para a adequação dos ativos existentes e para a criação de novos projetos que considerem esses efeitos e os impactos nos custos das empresas, nas solicitações de reequilíbrios contratuais por conta de desastres e na contratação de seguros. De acordo com o Ministério dos Transportes, em 2023 as verbas destinadas para obras emergenciais, como desobstrução de estradas afetadas pelas chuvas, reconstrução de estruturas e outros reparos no rio Amazonas por conta da seca chegaram a cerca de R$800 milhões. Considerando a ampliação dos eventos extremos, é importante avaliar como o montante de recursos necessários para essa adaptação e consideração de novos métodos construtivos seja remunerado por uma tarifa razoável ao usuário. Além de todos esses pontos, o Governo Federal anunciou o plano Nova Indústria Brasil (NIB), que tem por objetivo direcionar a neoindustrialização da economia brasileira por meio de inovações, desenvolvimento tecnológico, transição energética e descarbonização. Uma das medidas necessárias para o sucesso do NIB é a garantia de oferta e de qualidade da infraestrutura que atenderá ao programa. O setor de infraestrutura apresenta grandes desafios e oportunidades para o país. É urgente a necessidade de investimentos novos, em adaptação e manutenção dos ativos existentes. É fundamental a união dos setores público e privado em busca de soluções e aplicações eficientes para a infraestrutura do país.

Economista, mestre em Economia (PUC-SP) e especialista em Infraestrutura (FIESP). É professora de Ciências Econômicas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua em projetos relacionados à logística e transportes. Renata Moura Sena

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ARTIGO

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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POR UM ADEQUADO DO FINANCIAMENTO SUS

POR ROSA MARIA MARQUES

Cerca de 80% da população brasileira tem o Sistema Único de Saúde (SUS) como única alternativa de assistência à saúde a seu dispor. Inscrito na Constituição de 1988, o SUS completará 36 anos em outubro (e a Lei 8.080, que dispôs sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como a organização e funcionamento de seus serviços correspondentes, 34 anos). Entre os avanços propiciados pelo processo democrático, em termos de proteção social, certamente o SUS é reconhecido como um dos mais destacáveis, similar à introdução do piso correspondente a um salário mínimo para os benefícios ou da extensão dos direitos previdenciários aos trabalhadores rurais. Mesmo assim, no início de 2024, se faz necessário intitular este artigo com uma palavra de ordem. Trata-se de deixar claro que, desde sua criação, o SUS nunca dispôs de recursos à altura de sua missão: garantir uma saúde pública e universal. Durante todo esse tempo, sem desconsiderar avanços ocorridos, sua história foi a de insuficiência crônica de recursos, o que impediu ou dificultou o pleno cumprimento de seu objetivo. Ao longo de sua história, diversas entidades, movimentos e frentes se mobilizaram para prover o SUS das condições necessárias para seu pleno desenvolvimento, tanto do ponto de vista dos recursos (e não somente financeiros) como da gestão. Entre eles, destaco a Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES). Essa entidade, desde sua fundação em 1989, tem participado

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A localização da indústria da saúde (leia-se insumos) no plano de reindustrialização do país constitui um enorme avanço, em consonância com os países que perceberam que, em tempos de pandemias, esse setor da indústria é um elemento chave para a manutenção da soberania nacional."

ativamente da construção de mecanismos que permitam a ampliação dos recursos para o SUS e de critérios para a participação das três esferas de governo em seu financiamento (e mesmo para o estabelecimento de critérios de transferência de fundos federais para os estados e municípios). Do ponto de vista geral, essa entidade sempre denunciou que a situação financeira do SUS era de subfinanciamento, isto é, que os recursos oriundos da esfera federal, estadual e municipal eram aquém do necessário para um sistema universal. Essa situação perdurou até 2017, quando o subfinanciamento transformou-se em desfinanciamento. A denúncia com relação ao subfinanciamento sempre teve como base o fato de o país destinar à saúde pública montante muito

inferior ao de países com sistemas similares ou mesmo com relação a um conjunto de países. Por exemplo, em 2016, antes de começar a vigorar o Teto dos Gastos, o gasto público com saúde correspondeu a 3,9% do PIB, enquanto a média dos países da OCDE foi de 6,5% e, entre os países com sistema similar ao nosso, 8%. No mesmo ano, o setor público foi responsável por 43% dos gastos totais em saúde, frente à 73,6% na média dos países da OCDE. É claro que esses percentuais se traduzem em gasto público per capita extremamente baixo (OCDE, 2021). Após 15 anos sobre a égide da Emenda Constitucional 29, de 2000, o financiamento federal da saúde passou a ser feito, a partir de 2016, pelos novos parâmetros da EC 86, de 2015. Esta Emenda

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estabeleceu, como novo piso do gasto federal com ações e serviços públicos de saúde (ASPS), percentuais crescentes da Receita Corrente Líquida (RCL), de 13,2% em 2016 a 15% em 2020. Essa EC mal começou a vigorar e foi suspensa pelo então chamado Novo Regime Fiscal. Em 2017, como sabido, começa a vigorar o chamado de Teto de Gastos. Contudo, fruto de negociação da aprovação da Emenda Constitucional 95, a saúde não teve seus recursos congelados a valores de 2016 no primeiro ano de sua vigência. Decorrente da negociação, foi antecipado como piso o patamar de 15% da receita corrente líquida (RCL), de modo que, em tese, houve aumento de recursos em relação a 2016, pois esse percentual seria aplicado somente em 2020. No ano seguinte, tanto o piso como o valor efetivamente aplicados em ações e serviços de saúde registraram queda, tanto em termos reais per capita como em proporção da RCL. No acumulado de 2018 e 2019, a saúde pública perdeu R$ 17,6 bilhões de recursos (SANTOS e FUNCIA, 2020) e, no acumulado de 2018 a 2022, 70 bilhões de reais (SANTOS e FUNCIA, 2023). A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para seu terceiro mandato introduziu esperanças entre aqueles que militam pelo SUS: estava aberta a possiblidade de alterar a tendência histórica de falta de recursos da saúde pública. De fato, mesmo antes de tomar posse, ao negociar recursos emergenciais com o Congresso, beneficiou o SUS, muito embora seu orçamento continuasse

insuficiente. Durante o primeiro ano de seu governo, não há dúvida que, para além do financiamento, houve melhora sensível na esfera da gestão, na recuperação do papel estratégico da prevenção (com destaque para a retomada das campanhas vacinais), entre outros aspectos. Além disso, a localização da indústria da saúde (leia-se insumos) no plano de reindustrialização do país constitui um enorme avanço, em consonância com os países que perceberam que, em tempos de pandemias, esse setor da indústria é um elemento chave para a manutenção da soberania nacional. Mais recentemente, em fevereiro de 2024, o anúncio de que os recursos não utilizados durante a pandemia da Covid-19 (no período de 2020 até 2022) poderão ser investidos em outras ações de saúde nos estados e municípios brasileiros constituiu um alento, somando R$ 17 bilhões aos recursos do SUS (MS, 2024). Apesar disso, os “sinais” são ambíguos, talvez fruto das contradições de um governo de Frente Ampla e da dificuldade de parte dele atuar na contramão do que 40 anos de domínio neoliberal no mundo impuseram como verdade inconteste. As contradições do terceiro governo Lula e seus limites não são, contudo, objeto desse pequeno artigo. Por isso, importa destacar dois fatos relacionados diretamente ao financiamento do SUS. De um lado, em novembro de 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) autorizou, por unanimidade, que o poder executivo respeitasse o piso mínimo

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constitucional a ser aplicado à saúde pública, o correspondente a 15% da RCL, somente a partir de 2024. Desse modo, o SUS teve uma perda de R$ 20 bilhões em 2023, que se somaram às perdas anteriormente ocorridas e aqui mencionadas. Como sabido, a decisão do TCU foi resultado de consulta feita pela área técnica do Ministério da Fazenda e teve o apoio do Ministério Público. De outro, o Novo Arcabouço Fiscal aprovado pelo governo Lula substitui o congelamento por pequeno grau de flexibilidade na evolução das despesas (nunca inferior a 0,6% aa e nunca superior a 2,5% aa). Mas, como a saúde e a educação têm pisos garantidos e esses estão vinculados a receitas, restringe-se a margem de manobra para que haja ampliação das despesas em outras áreas, intensificando o conflito de interesses no tocante à

definição do orçamento da União. Não por acaso, aumenta o número daqueles que consideram que essas vinculações devam ser revisadas. Além disso, e talvez mais importante, é o fato de que a nova regra fiscal continua a ter como parâmetro maior, tal como a EC 95, o equilíbrio das contas públicas. Nessas circunstâncias, é mais do que adequado nos valermos da palavra de ordem no título desse artigo. A ABrES, consciente de que é preciso construir um processo para que o SUS disponha dos recursos adequados, colocou para discussão, em 2022, o documento “Nova política de financiamento do SUS” (ABrES, 2022). Ele constitui um bom ponto de partida para que, de fato, capacitemos o sistema das condições necessárias para que ele cumpra plenamente seu objetivo.

Referências Bibliográficas ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ECONOMIA DA SAÚDE, ABrES. Nova política de financiamento do SUS. Disponível em https://abresbrasil.org.br/wp-content/uploads/2022/09/Proposta-Nova-Politica- de-Financiamento-SUS-Abres.pdf . Acesso:15/02/2024. MINISTÉRIO DA SAÚDE (MS). Cerca de R$ 17 bilhões não utilizados durante a pandemia serão investidos na saúde. Disponível em https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202402/cerca-de-r-17-bil- hoes-nao-utilizados-durante-a-pandemia-serao-investidos-na-saude. Acesso:15/02/2024. OCDE. (2020) Health Statistics. Disponível em: http://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=- SHA Acesso: maio de 2021. SANTOS, Lenir e FUNCIA, Francisco. Histórico do financiamento do SUS: Evidências jurídico-orça - mentárias do desinteresse governamental federal sobre a garantia do direito fundamental à saúde. Domingueira Nº 21 - Maio 2020. Disponível em http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-21-maio- 2020?lang=pt . Acesso: fevereiro dee 2024. SANTOS, Lenir e FUNCIA. Financiamento da Saúde e Piso Federal do SUS. Domingueira Nº 39 – Novembro 2023. Disponível em https://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-39-novembro-2023. Acesso: fevereiro de 2024.

Economista, com pós-doutorado pela Université Pierre Mendes France de Grenoble e Universidad de Buenos Aires. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Economia da PUC-SP. Integrante dos Grupos de Trabalho da Conselho Latino-americano de Ciências Sociais e Crisis y Economía Mundial e Seguridad Social y Sistemas de Pensiones. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política e da Associação Brasileira de Economia da Saúde. Rosa Maria Maques

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ARTIGO

As constribuições da economia feminista para a construção de um pensamento crítico

POR MARILANE TEIXEIRA

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Em qualquer configuração histórica em que se analisam as relações econômicas e sociais, essas somente se efetivam por meio da articulação de duas dimensões: a produção econômica e a reprodução social. A produção econômica entendida como a esfera do mercado, de produção de bens e serviços com valor monetário, e a reprodução social como sendo o espaço em que se realiza todo o trabalho de reprodução da vida humana. É na função específica do trabalho reprodutivo , visto como principal atribuição das mulheres, que encontramos a origem da divisão sexual do trabalho presente em todas as sociedades. O pensamento econômico que se constituiu em paralelo ao desenvolvimento do capitalismo oculta a interação entre o processo de produção e o processo de reprodução social que se forma no interior do sistema. Ao excluir da análise a dimensão reprodutiva e valorizar unicamente a esfera do mercado como o espaço privilegiado para a realização do processo de acumulação, o sistema relega as mulheres à dimensão privada e remove qualquer evidência de reconhecimento social do seu trabalho produtivo.

A separação imposta pelo sistema entre o público e o privado sancionará o lugar das mulheres não somente no espaço produtivo, mas em todas as demais dimensões da sociedade. Essa falta de reconhecimento se aprofundaria com a hegemonia da teoria neoclássica, que segue com forte influência até os dias atuais. Ao deslocar o conceito de valor-trabalho dos clássicos para um conceito de escassez, a teoria consolidou a separação entre as duas esferas e afastou o domínio privado de reprodução social do processo de produção e acumulação. Embora presente desde os anos de 1980, essa abordagem a partir da economia feminista ganhou relevância no Brasil somente nas duas últimas décadas e por iniciativa do movimento feminista organizado - que, ao elaborar uma crítica às teses neoliberais e apontar as insuficiências da economia tradicional para indicar soluções aos dilemas de uma sociedade cindida por desigualdades seculares, buscou nessa literatura novos aportes teóricos e metodológicos para repensar uma nova economia.

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